sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Pedacinho de uma vida

Sentada, enquanto espera o transporte D. Maria Manuela pensa para os seus velhos botões, "nunca fui rica, mas sempre tive dignidade. Servi os patrões e sempre os tratei bem e assim fui tratada!", pensava a D. Maria Manuela no seu conjunto de calça de ganga gasta, casaco de fato não muito novo, com o seu rosto expressando humildade.
O cabelo branco entre o cinzento e o mais escuro, de corte simples, mas bonito, deixava transparecer a sua simplicidade humilde e honesta. 
No rosto, sem pintura com traços gastos mas doces, olhos meigos de quem abre os braços ao mundo e o aceita como é.
As suas mãos queimadas não deixam esconder os anos de trabalho duro. Mantém a dignidade, cabeça erguida, mas sempre com a mesma simplicidade.
É solicitada pela sua natureza e tanto assim é que abusaram da sua inocência e boa vontade.
A sua beleza mantém-se. Lembra-se dos rapazes que a cortejavam e outros cujas memórias as lágrimas puxam. "Também eu fui bela", pensava ela quando olhava as moças novas.
Entra no autocarro e senta-se tão discreta e silenciosa, que quase pede perdão por ali estar.
Olha os miúdos que ali estão, uns sentados, outros de pé a dizerem baboseiras óbvias dos 12 e dos 13 anos, idade da parvoíce, que polidamente é chamada de puberdade/adolescência. O seu rosto franze a cada disparate que sai da boca destes futuros presidentes e ministros. "Estes miúdos não têm educação nenhuma. No meu tempo havia mais respeito. Os pais davam 2 ou 3 tabefes e acabava-se a malcriadice!". Eram outros os tempos.
A mistura de pensamentos e memórias vinha ao de cimo, coisas com importância, outras nem por isso, outras que a levam a conclusões.
Entre a sua beleza passada e presente que ainda se sente e se vê aos olhos de toda a gente, humildemente bonita de corpo e alma, as cenas descabias abundantes de falta de respeito, fruto da má educação ou ausência dela, as pessoas que se acotovelam e atropelam no autocarro para se manterem de pé, Maria Manuela faz uma retrospetiva desprendida de tudo, lamentando apenas as voltas estranhas, para si, que a vida dá.
Já não quer saber de nada, já muito pouco interessa, viveu, conheceu do mundo o que, para ela, havia para conhecer.
Conheceu coisas do bem e do mal, deixou muitos sem fala com a sua honestidade e franqueza, pelas quais por alguns foi elogiada e por outros ofendida, apelidada de pessoa sem modos, mas uma coisa era certa, mais foram os que lhe reconheceram as suas qualidades, trabalho de que tanto se orgulha ter cumprido.
Era humilde de corpo e alma, não vestia roupas caras, mas tantos a quiseram quantos a desdenharam.
O seu olhar puro deixa adivinhar que soube viver a vida enquanto a deixaram, errou por inexperiência, mas nunca por falta de hombridade. Deixa descair um ligeiro olhar do que a faz ser um mortal com defeitos e virtudes como tantos outros, mas é ela mesma.
Levanta-se, erguendo a cabeça sem arrogância. Por entre cotovelos e encontrões lá descobre a porta de saída para o que ainda tem a viver.
A vida tem momentos em que somos transportados. Enquanto estamos nessa pausa do nosso movimento, pensamos, observamos e voltamos a andar pelos nossos pés, traçando a cada passo o nosso fado, caminho, destino. Umas vezes conduzimos-nos ao nosso haver que, outras somos conduzidos ao que temos que ir. Faz tudo parte, é apenas mais um pedacinho de vida.  

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