segunda-feira, 30 de junho de 2014

Tenho a pele das mãos seca . . .

Tenho apele das mãos secas. As linhas das mãos enrugam ainda mais a pele que se gasta nos detergentes e na bancada da cozinha.
Tenho a pele seca e parece velha. Onde antes escorregava a seda hoje escorrega o pano que limpa o que os outros sujam.
Tenho a pele das mãos e as linhas das mãos marcadas. As marcas dizem que o trabalho faz as linhas do destino passado e cada dia que passa deixamos a nossa marca no nosso destino e o as marcas do destino nas nossas mãos . . .
O creme aligeira os vincos que o trabalho duro deixa na pele, mas não aligeira o peso de cada gota de suor que escorreu pelo nosso rosto, o peso de cada esforço ao qual se sujeitou a cabeça, o tronco e os membros.
As marcas do trabalho deixam sinais que se tornam o semáforo da labuta, os barómetros dos nossos limites, mas a forca interior não raras vezes, ultrapassa as barreiras do tolerável pelo corpo e novas marcas, novos sinais se avizinham, criando caminhos e carreiros que se assemelham com roteiros perseguidos pelos curiosos do que vem e do que vai e do que pode vir a ser ou nem por isso . . . Tudo o resto e habito.
A pele das mãos seca e as linhas das mãos vincam a pele a cada dia que passa e o creme já nem as esconde, deixa-as a vista de quem as quiser ver ou ler . . .
Dizem alguns expeditos que a idade das mulheres se vê na pele das mãos.
E a cara, o que diz?
E o cabelo?
E as curvas que se arredondam?
A pele seca das mãos, a pele enrugada da cara, o cabelo grisalho, as curvas redondas . . . são partes da mesma historia contadas ao mesmo tempo em simultâneo, desencadeando os medos de tudo e de nada, somos os maiores e os mais pequenos quando a realidade nos acorda e nos dá a noção das coisas, aquela noção que nos escapa enquanto o tudo e o nada acontecem e nos alteram a visão e a noção das coisas.
A vida vai-se vivendo e mais um traço aparece no rosto, a barriga muda de forma, as pernas ganham uma nova consistência e continuamos a andar com os mesmos pés que caminharam até aqui, mais cansados ou mais nervosos, mas a mente é marcada por linhas que não se vêem, as marcas que aí estão não se lêem com as pontas dos dedos ou com apenas com os olhos curiosos. As marcas invisíveis dentro de nós levam-nos ao inevitável balanço, lá de tempos a tempos, e os resultados nem sempre se vêem nas linhas das mãos, a pele, na cara, nas formas, apenas se sentem e calam-se até ao limite do que é possível calar-se.
A linhas das mãos são apenas marcas de tanto trabalho que a esfregona e o pano, ora molhado e quente ora molhado e frio, deixa cada vez mais profundas.
Tacteada por outras mãos carregadas de marcas e de linhas e destinos e fados e roteiros a pele arrepia-se, assim como a pele que ainda não esta curtida pela vida, pelos anos de verga sem poder levantar a cabeça enquanto grita sôfrega por dentro, implodindo no seu silencio toda a vontade de viver.
A pele seca pela esfregona, panos, agua quente, agua fria, pó, lixo, detergentes, diluentes muitas vezes quer pegar também tem vontade de gritar o que os ouvidos moucos e olhos tapados não suportam ouvir e ver, porque são existências com vontade própria, com sentimento e sentidos, sentem o que os nhurros da vida acham de pouco ou de insuficiente quando eles mesmos nada fazem para ser ou ir mais além e ali se ficam, encostados às coisas pequeninas e outras até tão inúteis quanto a sua própria existência.
A pele das mãos está seca e vincada, marcada por isto, por aquilo, por muitos golpes duros outros mais leves, uns mais profundos outros mais superficiais, mas ainda mexem, ainda sentem, ainda gostam de tocar nas superfícies que o mundo permite tocar, porque elas também lêem o que os olhos apenas podem olhar, tacteiam o que a boca não pode saborear, o que os ouvidos não conseguem ouvir, o que o nariz não pode cheirar, porque as mãos são parte do caminho para o que não se quer esquecer.

Ser-se selvagem . . .

É como se fosse uma jaula com paredes invisíveis que estão lá, mas que só tu é que sabes que elas existem assim como quem as construiu.
É como se fosse uma jaula com paredes que quando se toca nelas se sente mesmo que não se vejam, algemas e correntes fortes como aço, mas que não se vêem, cruz que se carrega, porque se foi fraco, porque se precisou, porque se deixou que as pusessem sem que nos apercebessemos que estávamos a ser aprisionados, é como que se devessemos sem saber que estávamos em dívida, porque contam connosco e não queiram saber se ainda estamos lá ou não. 
É como se nos atribuíssem uma obrigação que não nos pertence e deixassem a vida de outrem nas nossas mãos e nos impedissem de seguir o nosso caminho apenas porque alguém precisa do que não temos para dar.
É um peso, uma cruz que nos impõem para que o ar de outrem não esgote, não desapareça. Não é justo, não se faz. O coração tem vontade própria e não há nada nem ninguém que o controle, é como se fosse um animal selvagem que não tem justificação a dar porque é livre. Os animais selvagens morrem se forem enjaulados mesmo que as paredes não se notem, mesmo que as correntes não se vejam. 
Um animal selvagem quando ferido e descalabrado é tão frágil e tão vulnerável como qualquer outro, mas depois de curado e revitalizado não se deixa prender, porque a sua beleza está na sua liberdade, no seu ser natural. Um animal selvagem será sempre um animal selvagem que estará perto de nós o tempo que tiver que estar. Não quer dizer que não reconheça quem o tratou, quem o revitalizou, quem o alimentou, quem o levantou de novo, mas um animal selvagem só é belo, porque é selvagem e isso o faz ser ainda mais deslumbrante.
Os animais selvagens também precisam do que precisam e buscam onde existe o que e quem lhes dê o que precisem, mas fogem de quem usa as suas fraquezas para os caçarem, porque aprendem e acabam por saber que o isco pode ser traiçoeiro. O isco é sempre o alimento favorito do animal que se quer caçar e manter em cativeiro, mas depois de morder o isco é tarde demais. O animal é emaranhado num enleio, num emaranhado enquanto os olhos do caçador se entristecem por ver o animal a debater-se. O caçador sente o misto de querer manter a sua preza apenas para si e o sofrimento de a ver degladiar-se com a rede na qual 
foi encurralada. 
Ligação entre seres selvagens e outros é possível a partir do momento que seja respeitada a natureza de cada ser, fora isso é cobrança, é pressão, é um misto de sentimentos cuja descrição dói só de escrever, o som do conjunto das suas letras juntas magoa mesmo que seja verdade e por mais que se queira nada se pode fazer, porque não se cura com ácido o que está em carne viva. 
Não é egoísmo ou ingratidão, não é mau agradecimento, não é falta de consideração, não é morder a mão que se estendeu para que nos levantássemos, não é nada que se pareça com o que quer que seja relacionado com falta de carácter e nobreza de espírito, bem longe disso, apenas as coisas mudam quando menos esperamos, apenas as coisas esmorecem, enfraquecem, enquanto outras são firmes, porque são as que alimentam o melhor de todas as relações entre os seres, mais belas, as mais estáveis mesmo que não sejam essas as realmente desejadas, porque outros sentimentos se levantaram e assumiram o comando de alguns barcos, mas são as que ficam e as que verdadeiramente unem seres que respeitam mutuamente as suas naturezas.
Ser selvagem, ser livre como um ser selvagem é das coisas mais belas, ser livre de qualquer tipo de prisão, jaula, corrente, muro, porque nascemos para ser livres e estar enquanto podemos estar da forma como pudermos estar. Não há nada nem ninguém que possa impedir de isso ser assim. Até os seres selvagens se encantam e deixam de se encantar. Até os seres selvagens querem outros seres para si, porque se afeiçoam a outros seres e sabe tão bem esse estado de se estar apaixonado, mas apaixonamos-nos pelo que é mais belo e o mais belo só o é na sua forma natural de ser e não dentro de uma jaula como um animal do circo, triste, longe do seu campo aberto para se movimentar sem fronteiras que não sejam os seus próprios limites.
Ser selvagem é ser feliz sem dependências, sem medos de perder o que não é nosso, sem medo de estar no mundo, sem medo que desapareça o que tem que seguir o seu caminho sem que se perca o contacto quando este é para ser estabelecido. Estamos porque queremos estar e não porque temos que estar, somos porque somos e porque gostamos de ser e porque mais se dá quando se gosta de estar e de ser, porque a vida mesmo que tenha coisas que não são leves e algumas até mais pesadas que o que é tolerável e suportável por apenas uma pessoa só, está-se lá porque se quer estar e não enquanto obrigação, porque é uma dádiva poder e gostar de ser e estar.

Pedras . . .

Fosse eu a contar as pedras que trago no bolso, teria que perder muito tempo a contá-las. Umas são pontiagudas e rasga-me os bolsos, essas vou tirando com cuidado para não fazer mais estragos, outras são verdadeiros diamantes por polir, mas fá-lo-hei apenas quando o tempo estiver bom para isso,outras são apenas seixos que recolho nos momentos doces e guardo-as com o mesmo prazer do momento em que as colhi, outras pedras são apenas pedras que estão apenas a ocupar espaço; dessas também me tenho que desfazer.
Na minha mala trago tantas outras pedras, umas dão-me jeito para fazer decorações e deixá-las numa prateleira onde sejam bem visíveis para que se faça justiça à sua beleza, outras ainda sabe bem sentir-las nas minhas mãos, relaxam e descontraem-me.
Sim, são pedras, são pedaços de mundo que pesam, mas o seu peso não me incomoda porque são apenas as necessárias, até mesmo aquelas que agora jogo novamente no chão foram úteis e devolvo-as à sua origem.
Se eu fosse a contar as pedras que carrego muito provavelmente percebia que já não me lembrava de mais de metade delas, apenas ficaria a olhar e a tentar perceber porque é que as mantive comigo e ficaria triste por não conseguir perceber de facto o porquê de ainda estarem no meu saco, nos meus bolsos, ou nas minhas mãos.
São tantas as pedras que pela quantidade dariam para construir uma casa . . . Mas nem todas servem para a sua construção porque nem todas fazem sentido ou fazem parte das paredes de uma casa . . . boa parte de elas são apenas decorativas outras são melhores que os próprios tijolos de burro que é do melhor para se construir uma casa que seja digna de ser habitada.
São tantas as pedras e algumas eu já devolvi ao mundo onde as colhi.
Nós colhemos pedras por onde passamos para que nunca mais nos esqueçamos de alguma coisa, mas muitas delas não passam de cábulas ou apenas formas de não nos esquecermos de alguma coisa que julgamos importante, mas o tempo mesmo assim passa e apaga tanta coisa, mesmo que não se queira que ele apague. Felizmente existem outros livros de anotações . . .
Tenho os meus bolsos e mala cheios de pedras e vou mandando algumas para o seu devido lugar, já não fazem falta a mim, mas sim a outros que as vão pegar e guardar nos seus bolsos e malas até que elas deixem de fazer sentido, até que cheguem à mesma conclusão que eu e comecem esses também a devolver as pedras ao seu domínio permanente.
As pedras tal como as pessoas têm uma razão de viver, um sentido, um haver que e muitas coisas mais, ou tantas outras coisas que nem sempre percebemos exatamente o quê e para quê ou  até mesmo o propósito para qualquer coisa mas continuarão sempre a ser pessoas . . . E eu também sou uma pessoa e como tal, o sentido que faço na vida de quem quer que seja é o sentido que tenho que fazer, o resto são detalhes.