sexta-feira, 16 de maio de 2014

Um dia acordei e decidi dizer-me a verdade . . .

Um dia acordei e decidi dizer-me a verdade. Não me calei enquanto não me disse toda a verdade de tudo o que não queria ver e ouvir, mas teve que ser. Não sei qual foi pior, ficar a saber verdades escondidas se o peso da ignorância.
Um dia decidi dizer-me a verdade que andava a esconder de mim e para ficar chocada deixei de acreditar em parte para ser mais leve, mas era impossível. A verdade não só dói, como cura, como o ácido que queima para cicatrizar a ferida que não para de sangrar.
Um dia acordei e quis olhar para o espelho e ver toda a verdade, doesse muito ou pouco, como se me esmurrasse e fosse ficar com a cara num bolo. Cada verdade de recebia atingia-me como um soco de pugilista e eu continuei de pé em frente ao meu espelho para oferecer a outra face e aceitar as consequências de cada verdade que recebia com toda a sua violência e ali deixei-me ficar entregando-me e deixando-me ficar como se cada dor aliviasse o peso do errado.
Um dia decidi que ia olhar ao espelho e não ter medo de mim, não virar as costas ao que não queria ver e que amarrar com todas as minhas forças para não fugir de mim, do que me mete medo e recuso a enfrentar. Não me dei hipótese. Segurei as minhas mãos e braços, fiz a corda amarrar-me à cadeira que tentei partir de tão insuportáveis e dolorosas as verdades. O meu corpo caiu morto de cansaço pela violência de cada verdade, de todas as coisas temidas e das quais ganhei mais velocidade a fugir que a andar para a frente.
Fiquei desmaiada de dores no chão. O tempo passou e ali fiquei à mercê da força do vento, da chuva, dos ramos secos que cortavam a pele insensível sovada e tudo o que era verdade escondida com carga impiedosa, cruel, vil; mas eu é que quis que a verdade viesse ao de cimo e viesse na minha direcção para que a pudesse sentir na pele.
O tempo passou, as estações do ano passaram umas atrás das outras e o meu corpo continuava jazido no chão. Os cães, gatos, ratos e outros animais nele fizeram tudo o que os animais fazem quando abandonados e o corpo jazia sem se mover, ou sentir.
Como a verdade vem de dentro para fora a pele nova também se regenera debaixo da pele velha, suja e rasgada.
O corpo que não se mexia, como que pequenos impulsos, começa a reagir, começa a despertar aos poucos e poucos e como se regressasse de repente à vida, num sorver rápido e ansioso de oxigénio, o corpo acorda do seu coma induzido pelas verdades que são como o veneno das áspides para mesquinhez e arrogância da ignorância. Áspides misericordiosas se tornam.
No silêncio e aparente imobilidade tudo se movia. No aparentemente morto, nulo, ausente, tudo acontecia mesmo que nada parecesse mover-se. O interior sofria mergulhado no seu silêncio, as lágrimas percorriam-lhe as veias no lugar do sangue que saiu por todos os golpes e a dor curava cada polegada de tecido no seu tempo perfeito para um ser tão imperfeito.
O corpo volta à vida carregado do veneno das verdades que o deixaram insensível, frio, implacável e imune à farsa e engano. Tudo deixou de ser o que era . . .
Os olhos vêem para lá dos olhos, o bater do coração ouve-se para lá do que não se ouve, mas bate, quase que em silêncio, mas bate como se não estivesse lá. A dor tirou-lhe o som e ampliou o seu espaço.
Os olhos olham com um misto de compaixão e frieza gélida de quem não sente . . . as mãos movem apenas quando necessário, as palavras saem apenas quando chamadas pela razão e o cinzento pálido dá lugar a um cinzento rosado meio reluzente. Olha-se, mas não está lá mesmo que esteja presente.
Um dia acordei e decidi entregar o meu corpo à verdade e morri. Deixei-me morrer sem suicídio, matei o que vivia no lugar errado sem ter cometido um crime, antes um golpe de misericórdia sobre o que abundava que não vivia bem com a verdade. Foi uma morte sangrenta; esvaí-me em sangue, fiquei vazia de tudo o que era danoso, independentemente do tempo que levasse a reconstrução. Sem medo me entreguei à verdade, que como as áspides, envenenou homeopaticamente, tão lentamente tudo o que é pernicioso.
Entreguei o corpo à verdade que é o mesmo que morrer e nascer novamente, sem medo do que quer que seja, porque se está cheio de verdade, porque só vive em prol do que é verdadeiro, desferindo os golpes perfeitos sobre o que é falso e mascarado.
Finalmente se pode ser tudo o que sempre esteve lá que não se queria ver e deixar ser, mas que é forte, poderoso, que é a verdadeira fonte de tudo como tem que ser, mesmo que não sendo o que é perfeito é o que é verdadeiro e real!

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